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A psicologia dos mártires
Postado em 08 de Maio de 2013
Como entender a mente de um mártir? O que faz alguém manter a fé pela qual é torturado?
“Mártir” (do grego martys, “testemunha”) é alguém que é morto por causa de sua fé, pelo simples fato de professá-la. A princípio, o termo era aplicado aos cristãos que sofriam torturas ou a morte por sustentar suas crenças. No entanto, com o passar do tempo, a palavra incorporou outros conceitos. Morrer pela pátria, pela liberdade, pela independência, pela autonomia de um povo, por um ideal social ou político, ou até mesmo em uma guerra são ideias que passaram a fazer parte do significado da palavra mártir. Neste artigo, falaremos sobre os mártires cristãos.
Torturas e tormentos – Quando pensamos nos mártires do cristianismo, quase sempre nossa mente se reporta ao Coliseu, aos cristãos sendo lançados às feras ou às fogueiras nas quais eram queimados vivos. Embora essas fossem formas frequentes de martírio, não eram as únicas. Na verdade, quando estudamos as torturas infligidas aos cristãos ao longo da História, é difícil acreditar e entender como o ser humano é capaz de chegar a tal ponto de frieza e crueldade. A fim de se ter uma pálida ideia do que implicava alguém tornar-se um mártir, estão relacionadas a seguir algumas das formas de suplício aplicadas aos cristãos.
Cruzes, estacas e suspensão. À semelhança de Cristo, a pessoa era pregada ou amarrada a uma cruz ou estaca. Para intensificar o sofrimento, as posições variavam: de cabeça para cima ou para baixo; pendurados pelos braços ou pés, com ou sem pesos ou pedras amarrados; e pelos cabelos, no caso das mulheres. Em algumas ocasiões, o mártir era coberto com mel e então suspenso numa estaca ou poste para ser atormentado por moscas e abelhas ao sol, quando não, posto na terra nessa mesma condição, a fim de ser mordido por formigas.
Rodas. Eram variadas. Em alguns casos, o mártir era amarrado a uma grande roda em formato cilíndrico, que era solta a certa altura sobre terreno pedregoso. Outras vezes, eram amarrados a uma roda estreita que girava sobre uma plataforma cravejada com pontas de ferro, de modo que o mártir era mutilado à medida que a roda girava.
Estiramento e esmagamento. O indivíduo era preso pelos braços a uma estaca e pelos pés a uma talha (uma máquina simples baseada num sistema de roldanas, acionada manualmente). Ao passo que a talha era acionada, o corpo era esticado a ponto de deslocar os ossos. Também utilizando uma talha, ou pedra enorme, alguns iam sendo esmagados aos poucos.
Uso do fogo. Os torturadores eram pródigos no uso do fogo. Em um dos tipos de tortura, o mártir era lançado de cabeça em um caldeirão cheio de chumbo fundido ou óleo fervente. Alguns eram literalmente fritos em panelas ou chapas aquecidas, adaptadas ao seu tamanho. Havia também o chamado touro de bronze, que consistia numa escultura oca, em cujo interior (semelhante a um forno) o condenado era posto para morrer assado, após serem acesas as chamas na parte inferior do animal. Segundo a tradição, Antipas, mencionado em Apocalipse 2:13, foi martirizado assim.
Esfolamento. Sem dúvida, uma das mais cruéis formas de tortura. Nesse caso, o mártir era amarrado e esfolado (tinha sua pele retirada) vivo. A tradição conta que o apóstolo Bartolomeu foi submetido a essa forma de suplício.
Outros tipos de tortura. Faltaria espaço para descrever cada tipo de tortura, método ou os instrumentos fabricados para esse fim contra os cristãos na Antiguidade e no período da Idade Média. É horrendo observar a inteligência e criatividade humanas para o mal, mesmo numa época de profundo atraso intelectual. Outras formas de martírio eram: afogamento (o mártir era preso em uma caixa de chumbo e atirado aos rios), perfurações (prendia-se o indivíduo e perfurava-o com lanças, espadas, estacas pontiagudas, punhais, etc.), amputação (os membros eram amputados um a um, com auxílio de machados, lâminas ou serras), espancamento, apedrejamento, uso de espinhos e farpas sob as unhas, entre outras.
Fato curioso – Os relatos de martírio de cristãos revelam algo intrigante. Boa parte dos que eram torturados e assassinados por sua fé passava seus últimos momentos cantando, louvando a Deus ou orando. Em alguns casos, enquanto morriam, encorajavam os que assistiam a cena a serem fiéis a Deus, fazendo do local de martírio uma espécie de púlpito.
A psicologia dos mártires – Como entender a mente de um mártir? O que faz um ser humano, diante das mais cruéis torturas, manter firmes suas crenças? Qual o segredo pelo qual pessoas frágeis – mulheres, idosos, pobres sem expressão – eram capazes de se colocar diante de reis e imperadores, juízes e autoridades com ousadia invejável? Que força era aquela que, no calor da fogueira, sentindo as chamas a carbonizar seu corpo, era capaz de entoar as mais belas canções de louvor? Qual a psicologia de um mártir? Se pudéssemos entrar em sua mente e examinar as profundezas de seu coração, o que encontraríamos? Qual a razão de tanta coragem e força sobre-humanas. Qual a mola propulsora que impeliu milhares de cristãos, ao longo dos séculos, a trilhar um caminho de lágrimas, sangue e morte?
Faz parte do mecanismo natural de defesa da maioria dos seres vivos recuar diante do sofrimento. Desde muito cedo, aprendemos, na prática, o que isso significa. Qualquer criança que insista em “cutucar” os bolos feitos por sua mãe, mais cedo ou mais tarde, vai se deparar com a realidade de que o fogo, ou o calor, queima. A primeira reação natural diante da sensação de queimadura é retirar imediatamente o dedo, afinal, ninguém quer ser queimado.
Fugir de situações que ofereçam risco à integridade física não é necessariamente um ato de covardia; faz parte do instinto de sobrevivência. Deus nos dotou desse instinto a fim de sobrevivermos neste mundo hostil e perigoso, após o pecado.
Contudo, o que impressiona é que o caso dos mártires contradiz a lógica da biologia. Em lugar de recuar diante do sofrimento, eles iam ao seu encontro. Em lugar de fugir, se submetiam, mesmo diante da possibilidade de evitar o martírio. Como entender?
Ao se analisar a história dos mártires cristãos, as declarações de alguns deles momentos antes de morrer e os relatos de testemunhas oculares, nota-se que sua consciência era bem clara com relação a algumas questões existenciais.
Senso de identidade (“Quem eu sou?”). Os que morriam por sua fé tinham convicção de quem eles eram. Tinham certeza de sua filiação – eram filhos de Deus (Jo 1:12) –, bem como de sua cidadania – sua verdadeira pátria era o Céu (Fp 3:20).
Senso de origem (“De onde vim?”). Os mártires criam que eram fruto da criação de Deus. Estavam cientes de estar devolvendo-Lhe, em louvor, a vida que dEle receberam. Não eram os algozes cruéis os donos de sua existência, mas o Deus Criador.
Senso de propósito ou missão (“Por que estou neste mundo?”). Os cristãos sabem – ou deveriam saber – que não estão neste mundo simplesmente por estar; há um propósito, uma missão: ser testemunhas de Deus e conduzir outros a Ele. Esse senso de missão gerava nos mártires um forte sentimento de dever, a ponto de, se preciso fosse, depor a vida no seu cumprimento.
Senso de destino (“Para onde vou?”). Ao contrário dos gregos, que acreditavam que a História vai e volta num movimento cíclico, como uma eterna roda gigante, judeus e cristãos sempre acreditaram que o tempo é linear. Isso significa que viemos de algum ponto no tempo e caminhamos rumo a outro ponto. A História, na visão judaico-cristã, também é climática, o que quer dizer que chegará a um clímax, a um ponto culminante. De acordo com a Bíblia, o ponto culminante da História é o momento em que Cristo voltará à Terra para colocar fim ao reinado do mal e estabelecer Seu governo eterno. Nesse paraíso tomarão parte os que permanecerem fiéis. Saber disso dava aos mártires o conforto necessário para abrir mão do que fosse preciso no presente, visando ao futuro.
Conhecer os assuntos nos quais se concentravam, ou seja, o foco de seus pensamentos, também nos ajuda e entender o que se passava na mente dos mártires.
Foco na eternidade. Os mártires cristãos tinham consciência de que sua vida neste mundo, por maior que fosse a duração ou o sofrimento, jamais poderia ser comparada à eternidade. Ao morrer por sua fé, sabiam que estavam trocando o finito pelo ilimitado, o escasso pelo incalculável.
Foco na recompensa. Embora os cristãos sinceros não O sirvam por interesse, Deus promete recompensas aos fiéis. A maior delas, sem dúvida, é a vida eterna num mundo perfeito. Manter o foco nessa recompensa ajudava os mártires a transferir seu olhar das chamas que os consumiam e das feras que os dilaceravam para a glória do mundo por vir e suas alegrias.
Foco em Deus. A comunhão com Deus era o segredo fundamental por trás da resistência e perseverança dos mártires do passado. Os que morriam por amor a Cristo O conheciam, pois mantinham com Ele um relacionamento pessoal e diário. Orar, memorizar textos bíblicos e cantar hinos de louvor a Deus era parte da rotina dos antigos cristãos. Essa intimidade com o Eterno fazia com que não hesitassem em entregar a vida. Viver ou morrer para a glória de Deus era sua aspiração.
Fator ressurreição – Além dos elementos subjetivos mencionados acima, é importante destacar que a coragem dos mártires também era baseada em um fato histórico: a ressurreição de Jesus. Por que pessoas sofreriam, voluntariamente, execuções horríveis, quando podiam evitá-las, simplesmente renunciando sua fé? A única resposta plausível – especialmente no caso dos apóstolos e dos cristãos do primeiro século – é que essas pessoas tinham absoluta convicção de que Cristo realmente havia morrido e ressuscitado dentre os mortos, comprovando assim ser o Filho de Deus.
Essa evidência se torna ainda mais contundente quando consideramos o fato de que aqueles discípulos não obteriam nenhuma vantagem em sustentar seu testemunho, caso fosse mentira. Muito pelo contrário, o resultado de manterem sua confissão seria – como foi – perseguição e morte. A certeza da ressurreição de Cristo foi, senão a principal, uma das maiores motivações do martírio cristão.
A ação do sobrenatural – Sem a atuação do Espírito Santo, convicção alguma seria capaz de suportar tamanho sofrimento até o fim diante da possibilidade de renúncia. Em última análise, é Deus, através de Seu Espírito, quem fortalece o mártir. De acordo com Jesus, é Ele quem põe as palavras certas nos lábios dos que são levados a depor diante das autoridades (Mt 10:19,20). O mesmo Deus os reveste da força necessária para enfrentar o julgamento, a tortura e, por fim, a morte (2Tm 4:17). Assim, a razão maior da força e coragem dos mártires vinha do Céu.
Por que Deus permitiu? – Talvez você já tenha feito essa pergunta, ao ouvir a história dos mártires do cristianismo. Mas, para dar uma resposta satisfatória a essa questão, precisaríamos abordar o tema da origem do mal, do grande conflito e do porquê do sofrimento, e esse não é o propósito deste artigo. O que podemos dizer aqui é que a morte daqueles heróis da fé faz parte de um enredo muito mais amplo do que nossa mente é capaz de entender. Aspectos como a soberania de Deus e o caráter e fidelidade dos próprios mártires eram pontos que estavam em jogo. Além disso, é incontestável o fato de que o testemunho de fé dessas pessoas contribuiu decisivamente para a salvação e encorajamento de milhares de outros cristãos através dos séculos, bem como daqueles que tiveram que enfrentar situações semelhantes na defesa da verdade.
Qual a diferença? – A definição de mártir, como vimos, não se aplica unicamente aos cristãos que sacrificavam a vida defendendo sua fé, mas também àqueles que morrem por ideais patrióticos, políticos ou sociais. Há quem classifique como mártires também aqueles que morrem na chamada “guerra santa”, extremistas religiosos que, geralmente, recorrem ao suicídio como tática de combate.
Afinal de contas, qual a diferença entre os mártires cristãos e Tiradentes (chamado mártir da Inconfidência Mineira), por exemplo, ou os homens-bomba?
A diferença básica, em minha opinião, está na cosmovisão. “Cosmovisão” é um termo utilizado no campo da Filosofia para se referir ao “quadro de ideias e crenças pelas quais um indivíduo interpreta o mundo e interage com ele”. De maneira simples, cosmovisão são os óculos através dos quais cada um enxerga a vida, ou o mundo ao seu redor.
A cosmovisão de um mártir cristão era radicalmente oposta à visão de mundo dos outros “mártires”. Conforme já falamos, os cristãos tinham em mente, bem claras, as principais questões que dizem respeito à existência (“Quem sou?”, “De onde vim”, “Por que estou neste mundo?” e “Para onde vou?”). A resposta a essas perguntas conferia a eles uma visão completamente abrangente da vida e da realidade. Além disso, os três focos mencionados (foco na eternidade, foco na recompensa e foco em Deus – principalmente o último) faziam com que os mártires cristãos tivessem uma motivação muito mais ampla do que os demais.
A decisão daquelas pessoas, de render a vida em lugar de renunciar a fé, longe de ser um ato movido por paixão ou fanatismo (como no caso de terroristas suicidas), era algo racional. Havia lucidez na atitude delas, sua consciência era clara e sua razão, sadia. Em lugar de manter uma religiosidade doentia e extremista, tinham plena acuidade mental para pesar as consequências de sua decisão.
Enquanto os mártires do fanatismo religioso defendem a luta, a guerra, os mártires cristãos eram partidários da paz e da não reação. Ao passo que aqueles promovem o assassínio em massa, estes defendiam o valor da vida humana (os cristãos não procuravam a morte, apenas não fugiam dela).
Outra diferença fundamental diz respeito ao incentivo. Os extremistas dão uma ênfase exagerada à recompensa (um paraíso com virgens à sua disposição, etc.), enquanto o estímulo principal no coração dos mártires cristãos era o amor – amor a Deus e a Sua Palavra.
No caso daqueles que se tornam mártires em função de sua luta por bons ideais – políticos, patrióticos ou sociais –, embora seu propósito e intenção sejam nobres, sua cosmovisão é estreita, limitada, já que lutam por aspectos bastante particulares da vida humana. Embora seus esforços sejam louváveis e devamos muito a eles, seu resultado é apenas para esta vida. Seus olhos não alcançam o horizonte da eternidade. Os cristãos, porém, sabem que sua luta ultrapassa as fronteiras do tempo e do espaço e tem implicações eternas e cósmicas. Homens, anjos, demônios e todo o Universo eram testemunhas de seu martírio; e as decisões tomadas ali poderiam ser decisivas para toda a eternidade.
O legado dos mártires – De tudo o que podiam deixar como herança, o maior legado dos mártires foi seu exemplo. Exemplo de fé, coragem, amor e fidelidade a Deus. Foram espetáculo ao mundo, mantiveram sua confissão, derramaram o sangue pela Causa e foram heróis. Heróis que, sem espada, conquistaram reinos; conquistaram o medo, conquistaram a si mesmos, conquistaram o mundo e, acima de tudo, a eternidade. Seus nomes, na maioria, permanecem no anonimato entre os homens, mas no Céu, com certeza, estão na galeria dos grandes vencedores de todos os tempos.
Nossa parte – Por fim, a pergunta mais importante é: E nós? Teríamos a mesma coragem que eles? Se nos confrontássemos com o calibre de um revólver e o dilema de permanecer fiéis a Cristo e morrer ou negá-Lo e viver, qual seria nossa decisão? Se você titubeou em sua resposta, é hora de rever sua vida cristã. Qual tem sido sua real motivação para servir a Cristo? Qual o grau de intimidade que julga ter com Ele? Onde está seu foco? Estão claras em sua mente as quatro questões existenciais (“Quem sou?”, “De onde vim”, “Por que estou neste mundo?” e “Para onde vou?”)? É seu sincero desejo honrar a Deus, quer pela vida ou pela morte? Pense nisso, e que Deus o ajude em sua decisão!

(Eduardo Rueda é editor associado de livros na Casa Publicadora Brasileira)
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